31 agosto 2009

A Organização Mundial da Vida informa

(Paulo Pappen)

A Organização Mundial da Vida informa:

O trabalho escravo passou a se chamar apenas trabalho. Assim, os escravos deixaram de se chamar escravos, e devem ser mencionados como trabalhadores, funcionários ou colaboradores. Consequentemente, acaba-se também com a idéia de liberdade, que deixa de fazer sentido a partir do momento em que todos são livres. A antiga luta pela liberdade, então, deve ser substituída pela luta pela paz.

As pessoas querem paz, mas acabam ficando livres. E quando querem ser livres, acabam encontrando a paz. A paz, portanto, é inimiga da liberdade. Inimigos são aqueles que brigam pelo mesmo lugar, e a paz é não brigar. Então é a liberdade que impede que a paz exista, porque a liberdade é justiça, e a justiça é luta, briga, pedrada no gigante.

O gigante é a sociedade. A sociedade é cada vez maior, e assim vai aumentando a sombra do gigante. A sombra é a paz do verão. O sol é a liberdade do inverno.

Isso tudo soa desconexo porque é uma tentativa de cruzar linhas paralelas. Até agora, a paz e a liberdade demonstraram ser as mais belas linhas paralelas do destino humano. Não se exclui, porém, a possibilidade de que elas não sejam paralelas e, portanto, um dia se encontrem num x.

Essa possibilidade é alimentada pela esperança, a linha que ziguezaga entre a paz e a liberdade. Nossa linguagem é baseada na diplomacia exercida pela esperança, e é por isso que estamos o tempo todo nos contradizendo. Uma hora queremos paz, e na outra liberdade, mas no fundo só estamos fazendo propaganda pra esperança. A esperança é quando estamos acordados, pensando e falando, o que não traz nenhuma satisfação vital.

Só dormir é satisfação garantida, porque o sono junta a liberdade e a paz. As pessoas morrem de fome, de sede, de frio, de medo e de solidão, mas nunca morrem de sono. É assim que se conseguiu chegar ao século 21: permitindo minimamente o sono.

Permitir é uma palavra ligada à liberdade, de onde se presume que, no fundo, a luta é pela liberdade. Isso porque a liberdade conduz à paz, e a paz não conduz à liberdade.

Mas se são linhas paralelas, como pode uma nos levar à outra?

Calma. Aqui entra outra questão interessante: as linhas são paralelas, não são iguais. A liberdade acredita numa paz vinda com a luta e o movimento, mas a paz não reconhece nenhuma liberdade fora dos seus domínios.

Porque a paz é disciplina, é prever o que pode acontecer e acreditar nessa previsão. E a liberdade é improviso, uma reação diante da reação do outro. Essa é a tendência natural do ser vivo: agir, reagir, se mexer. O pensamento (acreditar, sonhar, falar) é uma característica do animal humano, e portanto lutar pela paz faz sentido apenas para a humanidade. A liberdade é uma luta comum a todos os animais e é por isso que é mais simples. E por ser mais simples, é mais satisfatória.

Mas satisfação não é liberdade e paz ao mesmo tempo?

Exatamente. É por isso que dormir é satisfação garantida: porque se dorme mesmo sem paz, mesmo sem liberdade.

É por isso também que a morte é muitas vezes referida como um sono, o sono, o descanso justo.


A Organização Mundial da Vida informa também que:

Da mesma maneira que se acabou com a escravidão pra se acabar com a liberdade, acabou-se com a censura pra se acabar com a subversão. Quer dizer, oficialmente não faz sentido existirem subversivos, já que não existe uma ordem a ser subvertida. Mas só foi possível acabar com a censura e com a escravidão porque as pessoas aprenderam a se autocensurar, e já estavam com a escravidão na alma.

Quanto ao futuro, pouco se pode saber, mas o fato é que demos aspirina e coca-cola pra todo mundo, e a tendência é que a gente continue zumbizando por aí.

27 comentários:

  1. Paulo genial! Eu quero Dormiiiiiiirrrrrr!!!

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  2. Aspirina com coca cola..zumbizando por aí..
    sem mais..

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  3. e o cara aquele que nos dizia
    "disciplina é liberdade"?

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  4. Disciplina é a maior virtude do anarquismo. Nao tem nada a ver com a disciplina dos milico, que é imposta de um corno pra um imbecil. A disciplina que é liberdade nao é imposição, é a relação natural entre duas pessoas dispostas a serem livres, ou seja, a lutar pela liberdade. Essa luta também nao tem nada a ver com a luta dos milico, que é irmão matando irmão. Essa luta é uma luta espiritual, onde o corpo é o meio e a alma é o fim. Duas pessoas devem lutar juntas contra a ignorância, pela compreensão dos mistérios da vida, e nao pelo petróleo, pelo latifúndio, pelo emprego de assassino oficial.

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  5. Issoisso..disposição em ser livre, esse é o espírito já que "quando nascemos somos programados a receber o que nos empurram com enlatados.."
    Mas infelizmente, o cara que disse que disciplina é liberdade acabou como aquele que disse "all you need is love", ou como aquele que tentou fazer uma rima de amor mas tudo pareceu tão fútil...

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  6. segundo Foucault somos herdeiros da sociedade disciplinar, nossos corpos foram domesticados e tornados corpos dóceis a fim de sermos efetivamente úteis para a sociedade disciplinar. e é nesse sentido que o poder não é só negativo, ele é produtivo pq produz corpos, e vira um espacinho fecundo pro poder se exercitar vigorosamente! portanto, civilização não está com nada e deusnoslivre sermos dóceis. sejamos selvagens! e livres!

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  7. Também não se trata de ser selvagem. A gente só precisa rever alguns absurdos. A internet, por exemplo, é uma coisa muito legal, mas bem que poderia ser utilizada de maneira menos burra e inútil. Também não tem sentido uma criança passar fome, frio e medo numa casa menor que o banheiro da auxiliar da empregada do subvicepresidente. Os aviões, os trens, as casas com aquecimento, tudo isso só facilita a vida das pessoas, mas não de TODAS as pessoas (na verdade as tecnologias ajudam 3 pessoas e dificultam a vida de outras 97). É óbvio que não precisa ser assim, e éjustamente por ser óbvio que precisa ser falado. Outra coisa, a jornada de trabalho não precisa ser de 8 horas diárias, nem de 5. Podia ser em torno de 3 horas por semana, com direito a meses de férias. O esforço da maioria pra produção de coisas inúteis é o nome menos feio pra escravidão atual, sendo que a escravidão, desde sempre, se baseia na ideia de que uns são melhores e mais divinos que outros (o que se torna verdade a partir do momento em que isso define a estrutura dessa sociedade).
    A sociedade nos disciplinou nesse regime de estupidez e ignorância e ta cada vez mais difícil de desenvolver a consciência, esse
    detalhe que nos faz criadores de nós mesmos, e isso não é metáfora. Hoje a gente sabe que pra ficar musculoso o cara tem que fazer exercícios regulares erguendo peso, por exemplo, e que pra não ficar gordo é preciso comer menos porcaria e mais salada.
    As pessoas estão tomando consciência dos limites do corpo, mas a questão ainda ta no âmbito individualista, porque a liberdade no capitalismo é ter dinheiro, é ter um carro, uma casa, um computador e outras maravilhas PARTICULARES. O antídoto ao capitalismo é a coletividade, mas a coletividade exige a consciência, a conversa, exige que se ceda um pouco, que o indivíduo acredite no "bem comum", no "amor", na "liberdade" e em outras palavrinhas sem valor no Grande Mercado Mundial.
    Também não se trata de mandar a civilização pra puta que a pariu, até porque essa puta mãe somos nós. É extremamente doloroso olhar
    pros lados e se deparar com a própria feiura e escrotice, mas nessa mesma civilização existem coisas bonitas que indicam o caminho pra paz e pra liberdade e pra deus, enfim. Isso é cabalístico também: a beleza vai salvar o mundo. E é a beleza mesmo, essa das mulher bonita, da chuva e do pôr do sol. A gente precisa se apaixonar. Encontrar um amor é um belo caminho pra consciência, pra compreensão de que somos pais de nós mesmos. Mas é preciso QUERER isso, ir atrás disso. Por enquanto, infelizmente, tem mais graça querer um carro, como se fosse mais fácil dirigir do que dar uma boa foda com a pessoa amada.

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  8. Humm..legal!
    Alguns comentários humildes para movimentar a discussão:
    1)A internet realmente não é inútil...mas eu tenho orkut! (pelo menos não sou escravo do msn!há)
    2)A maior parte da tecnologia (ou ciência) resolve problemas que não tínhamos antes dela ser desenvolvida..(isso é muito estranho..!)Ah..mas meu telefone celular tira fotos, minha câmera fotográfica toca música e meu som faz suco de jiló e mostra o horário local de Brasília e Sidney..(porque é sempre bom saber que horas são na Austrália..)
    3)Já diria o filósofo "Seu Madruga"..ruim não é o trabalho..ruim é ter que trabalhar! (pior é que isso faz algum sentido..eu acho pelo menos..)
    4)Grande, Paulo..antes de "mudar a constituição" ou o sistema, seria muito bom que mais pessoas quisessem/tentassem "mudar suas cabeças"

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  9. A gente não quer mudar nossas cabeças, não tem graça. O vazio é muito grande e é mais confortável deixar as coisas ao acaso, submetidas à tal da contingência que na evolução fez de nós seres assim. Então pra que querer redirecionar nosso destino dentro de uma ordem consciente?
    A verdade é que esse papo é muito cristão. Talvez a coisa toda colocada em termos cocainômanos chegasse ao coração dos poderosos e aspirantes (com canudo e tudo) ao poder.

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  10. minha gente. a civilização é um conceito construído e me perdoa paulo, mas eu não sou ela, e ela não é minha mãe! civilização é aquilo que carregamos como antítese da barbárie mas que como conceito ( e como prática) se instituiu às expensas de muitos, muitos, vezes muitos genocídios; o problema consiste em crer que A Sociedade independe de nós, e nós somos ardentes incoformados com um monstro opressor sobre o qual temos nenhum tipo de ingerência! Da mesma forma, dá pra tomar o senhor capitalismo! Capitalismo é uma opção subjetiva, uma racionalidade aceita e reproduzida e que ante a sua institucionalização nos cabe abrir com picaretas espacços marginais para viver. E sem a pretebnsão de sermos regra, por favor. A civilização (que desenvolveu o modelo capitalista) é a mãe de todo suprimento de diferenças, ela homogeneiza idéias, modos de viver, pensar, sentir, se conduzir. Lembrem da chegada da civilização na américa...quantas humanidades nesses lugares foram arruinadas, como estaríamos hoje se tivéssemos mais impressões guaranis? mais kaingangs? mais kaiapós? Estamos vivendo uma versão possível para sermos humanos. E sim, isso começa com a revisão do que somos enquanto " conceito", o quanto admitimos nossa civilidade impune, e o quanto carregamos com ela ( conosco) todos os gérmes do crime contra a diversidade. Pq talvez, ou muito possivelmente, a gente ame pior e nossa consciência egocêntrica se aguce pq nossa vida aceita que não nos devemos jogar fora, que a nossa civilidade nos lega algum aprendizado... Talvez pq nós não somos guaranis, ou charruas, ou quilombolas, não? Talvez pq só tenhamos experimentado essa forma bem enfadonha e enquadrada de sermos " humanos"....
    ( SIM!, sejamos selvagens - metaforicamente - ou não...)

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  11. E MAIS!
    A consciência como redentora é um papo demasiado iluminista. Proponho mil vezes a recuperação dos estados dionisíacos, os sonhos, a embriguez ( não necessariamente literal), a orgia artística arrebatador! pq essa coisa apolínea e iluminista da consciência já nos deixou um bocado de vezes frustrados. Faço parte do universo físico-prático (acadêmico) onde impera a idéia de que a Verdade da Razão, A suprema Consciência será capaz de nos trazer o bem aventurado bem-viver! Ora, vocês crêem nisso?
    E vai ano, e passa ano e nós aqui, depois de 2400 anos de Sócrates e só nos afundamos na hipocrisia da Razão.

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  12. Caro Anônimo (pra que nome, né? Coisa mais capitalista). Orgia artística arrebatadora! Gostei disso. Sonho é legal também. E a embriaguez e tal. Uma coisa meio hippie punk rajnish? Era de Aquário de polaina ouvindo Nirvana numa lanhouse? Perdão se parece irônico, mas não é e eu gosto de ler as coisas que tu diz. Queria que tu falasse mais sobre a prática de ser selvagem.

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  13. Não, Paulo. Era de aquário de polaina? Mas não era tu que queria o bem viver, a liberdade? Ei-la, ainda que de polaina - como preferir. Mas não trato disso, falo de algumas questões que não passam só pelo ideal tão decadente da vida boa pela conscientização das massas, ou dos poucos, ou do esforço coletivo (democracia?!) pela vida boa, a vida sã (?). Convidei apenas que pensasse sobre a possibilidade de desconstruir o que tu tem de iluminismo, pq creio já termos resultados suficientes pra dizer que ele não nos trouxe o que prometia (a vida boa! a igualdade, a fraternidade, e as demais ades que quiserem). E não que precisemos ser selvagens morando em ocas(mas que gente literal), mas que construir qualquer coisa a partir da civilização permanece dentro do mesmo projeto devastador, onde o que tu mais pede ( como o direito a viver a política de vida que tu quiser pra ti) fica submetida ao conceito sob qual tu ainda define a vida (a tua, e a de quem tu quiser); quero dizer que antes de mais nada é preciso naõ assentar práticas que estimulem a diferença, a diversidade, a vida criativa, sobre um projeto que liquidou a diferença desde que nasceu. E ser selvagem nesse sentido significa adbicar da civilização como principio e fim, em termos de valores. Uma comparação que pode soar grosseira, mas tu assentaria um projeto de direito a viver tua diferneça no projeto nazista? O que tu acha que a civilização fez com todos os não-civlizados? E não falo (só) em matança, mas, precisamente, em diferença (afinal, é essa a questão, não?). O que estranho nisso tudo é que é demasiado irônico que a gente construa algo com tantas certezas, sem desconstruir todas essas verdades (que como práticas, como tu disse) foram validadas como essenciais. Inclusive, ou sobretudo, pra investir apaixonadamente na reclamação delas.


    Até mais,
    Dayana (não sei postar com nome, nunca dá certo)

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  14. E só pra constar: sabem como os
    Mbyá-Guarani chamam o homem civilizado?

    JURUÁ: "palavras ao vento".

    (Dayana)

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  15. Esse é um tema complicado...

    A diferença faz parte da natureza. Faz parte tanto da nossa natureza "animal" e "selvagem", como também da nossa natureza "civilizada". A evolução depende da diferença. O mais forte ganha. É assim. E a palavra "evolução" deve ser entendida simplesmente como "mudança". Evolução não significa que se está "melhorando" ou "piorando", ou que o caminho é do "bem" ou do "mal". As coisas e os seres simplesmente estão em constante mudança. Em constante guerra (ou luta). E quem ganha a luta permanece. Permanece por mais algum tempo somente, até que apareça outro mais forte. Essa regra vale para o universo (o universo material que exergamos com os olhos...). Vale para os animais, para os vegetais, para as bactérias, para as rochas, para as estrelas, para os selvagens e para os civilizados. Pois na verdade não existe muita diferença entre esses conceitos. Muda o cenário do jogo, mas a regra continua a mesma: o mais forte ganha. Ganha o jogo quem marcar mais gols. Esse é o time mais forte. Não há "zebra" na lei da natureza. Se achamos que houve "zebra" é porque quem julgávamos ser o mais forte não era tão forte assim.

    Assim é o universo em que estamos. O universo material é regido pela dualidade, pela diferença e pela luta entre essas diferenças. Para escaparmos dessa regra, temos que buscar outro universo, que muitos chamam de universo espiritual. Mas enxergar esse universo (exergá-lo realmente, senti-lo plenamente), isso é quase que improvável para os seres do universo material. Pouquíssimos têm (ou tiveram) esse dom. Talvez Jesus, talvez Buda, outros também talvez quem sabe. Há quem chame isso de iluminação.
    Enquanto isso, diferenças sempre vão existir no universo material.

    Quem sou eu para dizer alguma coisa a esse respeito... Mas talvez, a resposta esteja simplesmente na maneira como lidamos com as diferenças, com as mudanças, e com o universo que exergamos (o material).
    O caminho para o universo espiritual não é material. Não pode ser traduzido em letras, em sons, em comportamentos, em sentimentos, etc. Isso tudo podemos "enxergar" no mundo material. Podem ser talvez interpretações. E toda interpretação tem alguma distorção. Mas a verdade é a verdade. Sem palavras e nem argumentos.

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  16. Minhas aulas de antropologia me obrigam a responder. A diferença deve existir no mundo, e é isso que sustenta a "igualdade": o direito à diferença. E a lei da natureza do mais forte já justificou darwinismos sociais tamanhos...
    (e podemos perceber que é uma interpretação histórica errônea). Então devemos pensar que o " universo em que vivemos é assim"? Que universo, cara pálida? De quem? o nosso? da nossa história ocidental? Que homem universal se pretende com esse "universo" universal?! Se os guaranis nos chamam de "palavras ao vento" já é um sinal de que eles não são tão "universais" assim.
    Aliás, para eles o "universo" é dividido como camadas de cebolas (existem para eles vários níveis espaciais nos quais eles transitam, dimensão telúrica e outra mais sutil - mas eles transitam entre elas em vida), e eles buscam aquilo que chamam de "terra sem males", onde o homem branco não estará, pois pra eles o homem branco é o problema do mundo. Como nós falamos em humanidade pondo todas as humanidades na nossa referência de "ser/estar" humanos? Como nós reclamamos da "humanidade" se nós só fomos humanos sob essa referência de cultura - e isso implica pensar, sentir, raciocionar, espiritualmente, politicamente, existencialmente sob essa perpectiva. Se existe algo de universal entre humanos é a diferença. E entendo a perspectiva budista, mas ela é uma versão possível, e justamente por isso não podemos - assim como não podemos ser todos guaranis, ou nuer, ou polinésios - tomá-las como a verão oficial "humana", definindo como é, afinal de contas, ser um humano. Acho que a questão é pensar que por mais que sustentemos isso em ciência, religião, etc, somos mediados por nós mesmos (pela nossa referência de existir) pra dizer que é "o viver". No entanto, deveríamos quem sabe ouvir o que tem tantos outros humanos não universais podendo eles dizer que tipo de humano eles são. Sem romantismos, sem idealismos, sem expectativas. Quando comecei a estudar antropologia entendi que um dos maiores crimes contra a vida humana ( aí sim, ela toda) é desejar pra ela que seja como eu penso que ela é - ou que a minha cultura, crença, paradigma seja o que representa o que significa estar viva como humana. Só os mbyá-guaranis me deram a maior rasteira. Se vocês disserem pra ele o que é ser humano, que o ser humano "é assim, é assado, tende a isso, faz aquilo" eles vão rir, rir, rir...

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  17. No universo material, a igualdade é teórica. E a teoria é uma invenção humana.
    O universo material é muito maior e mais antigo que o homem (embora o homem possa parecer grande segundo a perspectiva humana).
    A ciência é outra invenção do homem, para tentar explicar aquilo que ele não pode entender. E a antropologia abrange apenas uma pequeníssima parte do universo material. É a perspectiva humana de uma infinitesimal parte deste universo.
    O budismo é uma perspectiva das palavras de Buda, que por sua vez são uma perspectiva de sua sabedoria.
    O antropólogo constroi uma perspectiva dos "universo-cebola" guaranis. Ler o texto do antropólogo é a perspectiva da perspectiva.

    Por que “ouvir o que tem tantos outros humanos não universais” a dizer? Seria mais uma perspectiva. Mais “palavras ao vento”.

    Que tal ouvir o rio? (que provavelmente ensinou muito ao curumim que pensa saber alguma coisa sobre os “universos-cebola”)
    Fechar os olhos, ouvindo o rio, simplesmente ouvindo, sem tirar conclusões, observando a tormenta de pensamentos, até que ela se acalme.

    Qualquer palavra pode ser contestada, argumentada ou acreditada. Qualquer palavra pode parecer certa ou errada, dependendo da perspectiva que olhamos. Mas são somente palavras (mais uma invenção humana). Vence a mais forte. Afinal, as palavras estão no universo material (que é um universo de ilusões).
    As palavras nunca serão a verdade. Insistir em palavras é dar volta em círculos dentro do universo material.
    Para enxergar mais além do universo material é preciso muito mais que palavras. Existem infinitos caminhos possíveis, os quais não podem ser compreendidos através de palavras.

    Mas as palavras podem ser uma diversão, uma brincadeira, um jogo. E por que não? Há quem goste de jogar futebol. Há quem goste de atirar com arco e fecha. Este é o universo material, não?

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  18. Então nós concordamos. Por isso mesmo que qualquer pespectiva deve ser entendida como uma adoção particular e não pretendida para a humanidade.
    E o universo material como um universo de ilusões é uma perspectiva possível. Mas é uma dentre muitas. A percepção de que o universo material é ilusório como tu apontas não pode dar conta do Universo, visto que ela é a tua verdade, da tua perspectiva, e dos demais que nela acreditam. Aliás os guaranis são, nesse ponto, bastante "budistas", ou assim, contemplativos. Mas o que quis dizer é que a prática que tu tomas pra ti não pode (assim como nenhuma outra) incluir nela o desejo de contemplar o mundo de todas as pessoas, todas as subjetividades e práticas. A China não pode desejar para o Tibet aquilo que o Tibet não deseja e não pensa que ele é ou deve ser, e o Tibet não pode desejar pro mundo além do dele que seja como ele é, ou desejaria ser. Estou sim, no campo da prática, no terreno da subjetividade ( seja ela metafísica, religiosa, ou política, cientifica) que se pratica podendo impedir a verdade idiossincrática, o direito de viver a vida como se pensa que ele é. Seja ele guarani, budista, ateu, muçulmano, árabe, judeu - cada um está no seu tempo - como dizia Gilberto Gil.
    E cada um tem seu direito de experienciar sua vida nesse mundo tal como o percebem.

    Mas pra mim, para quem o universo material existe na sua gana, sangue, história, alma, pungência e poesia, ele é bastante, bastante suficiente. Quem sabe ele até nem é o meu Deus? Pra quê esperar pelo universo verdadeiro (se eu estou no das ilusões) se eu tenho as mãos ardentes pra inventar a minha verdade? E a verdade da vida material, da fecundidade, da potência de ação capaz de gerar vida, a flor, o rio, o abraço. De resto, não conheço nenhum mundo após o meu, por isso é o meu que eu considero bom, inventável, crível, tão cheio de possiveis, e tão, tão espetacular.

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  19. "Constituição íntima das coisas"...
    "Sentido íntimo do Universo"...
    Tudo isso é falso, tudo isso não quer dizer nada.
    É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
    É como pensar em razões e fins.
    Quando o começo da manhã está raiando,
    e pelos lados das árvores
    Um vago ouro lustrosa vai perdendo a escuridão.

    Pensar no sentido íntimo das coisas
    É acrescentado, como pensar na saúde
    Ou levar um copo a água das fontes.
    O único sentido íntimo das coisas
    É elas não terem sentido íntimo nenhum.

    Não acredito em Deus porque nunca o vi.
    Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
    Sem dúvida que viria falar comigo
    E entraria pela minha porta dentro
    Dizendo-me, Aqui Estou!

    (isto é talvez ridículo aos ouvidos
    De quem, por não saber o que é olhar para as coisas, não compreende quem fala delas
    Com o modo de falar que reparar para elas ensina).

    Mas se Deus é as flores e as árvores
    E os montes e o sol e o luar,
    Então acredito nele
    Então acredito nele a toda hora,
    E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
    E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

    Mas se Deus é as árvores e as flores
    E os montes e o luar e o sol,
    Para que lhe chamo eu "Deus"?
    Chamo-lhe flores, e árvores e montes
    e sol e luar;
    Porque, se ele se fez, para eu o ver Sol e luar e flores e árvores e montes,
    Se ele me aparece como sendo árvores e montes
    E luar e sol e flores,
    É que ele quer que eu o conheça
    Como árvores e montes e flores e luar e sol.

    E por isso eu obedeço-lhe,
    (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
    Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
    Como quem abre os olhos e vê,
    E chamo-lhe luar e sol e flores
    e árvores e montes,
    E amo-o sem pensar nele,
    E penso-o vendo e ouvindo,
    E ando com ele a toda hora.

    Alberto Caeiro, ou Fernando Pessoa.
    Ou qualquer um de nós =)

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  20. Há Paulo...legal a parada da evolução que tu abordou antes dessa discussão toda..melhor ainda a explanação do Beto, sobre a evolução e sobre perspectivas porque, quando comecei a ler lá de cima, me veio exatamente isso. A maioria das pessoas (incluindo biólogos..e eu que sou um demorei pra entender o pouco que acho que entendi, mas ainda posso estar errado) tem uma idéia distorcida do termo evolução,da sobrevivência do mais apto ou mesmo do acaso. Até por isso,creio eu, Darwin levou 50 anos pra publicar seu livrinho e se absteve de discussão a respeito disso. Bem, na verdade não penso que existem acasos (e é mesmo mais fácil pensar no acaso). Mesmo o que "surge", surge por uma oportunidade..ou é selecionado dentro de um contexto, então, não é bem acaso. Nesse sentido, acho que a coisa segue mais pelas "leis" da física, de Newton.."causa e reação". Chegarmos até aqui é consequência de termos vencido as demais espécies (como colocou bem o Beto)ou das outras não terem força suficiente para vencer..talvez isso sirva para as sociedades também (não sei bem, não sou sociólogo ou antropólogo..e nem sei bem pra que ou quem serve meu conhecimento...mas Darwin era teólogo e lia muita coisa sobre economia e antropologia) e talvez explique o porquê os EUA são potência mundial, que por sua vez deve explicar porque jogaram dois aviões naqueles famosos prédios. Tem sentido tudo isso? Não sei..esse é o absurdo da coisa. Tão absurdo quanto queremos mudarmos o sistema como se não fizéssemos parte dele ou como achar que sociedades que vieram antes (ou mesmo as que virão depois se pararmos de jogar CO2 na atmosfera e pararmos de comer carne) ou outras civilizações/espécies são "felizes" ou funcionam bem dentro do contexto ao qual estão inseridos. No mais, qualquer paradigma que se crie, qualquer idéia que se estabeleça (que quase nunca é a "verdade" pura, se fosse, não seria paradigma e sim um dogma) terá que "vencer" as anteriores..se vai ser bom ou não, pagamos (bem caro na maioria das vezes) p'ra ver.
    Reforço a idéia do Beto de que o tema é complicado. Acredito, ainda, que absurdo e liberdade são dois lados da mesma moeda. E tem uma coisa do meio acadêmico prático/racional que me atrai, que é justamente a possibilidade que teríamos, como seres humanos, de fazer as coisas melhores se usássemos isso (a razão??) que nos fez "vencer" evolutivamente, (e fez ocuparmos boa parte do planeta) a favor do bem comum. O bem da coletividade começaria por aceitar e valorizar as diferenças (nem todos precisam ter um "canudo" ou ler Focault ou ser doutor ou cacique ou pajé ou drogado ou natureba pra ser feliz ou ter importância dentro da sociedade/civilização) Isso é um exercício individual e aí, talvez, entre o tal do "conheça-te a ti mesmo", e mais um monte de blablabla..
    No fim..vamos embora ouvir o rio sem tirar conclusões nenhums que a gente ganha mais..!

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  21. Oi Dayana,
    Não sei se concordamos. Talvez. E talvez “melhor” ainda se não concordamos, pois as diferenças proporcionam a evolução (sem saber se é para “melhor” ou “pior”, mas simplesmente como mudança).

    Você diz que “a China não pode desejar para o Tibet aquilo que o Tibet não deseja e não pensa que ele é ou deve ser”.

    Por que não pode?

    Tanto a China pode, que ela de fato deseja isso ao Tibet. E não só deseja, como também está impondo isso ao Tibet. E o Tibet está morrendo. Talvez estará morto daqui um tempo. Talvez não morra, mas mesmo assim não será o mesmo Tibet de 50 anos atrás.
    Assim diversas civilizações desapareceram. Outras se modificaram.

    O curumim mata a onça. O cara-pálida mata a onça e também o curumim.
    A gigante-vermelha engole os planetas que estão ao seu redor. O buraco-negro engole a luz e também a gigante-vermelha.
    E assim, tanto o cara-pálida quanto o buraco-negro também já não são mais os mesmos de ontem.

    É certo? É errado? Pode? Não pode?
    Quem somos nós para dizer?

    Mas está aí! Podemos ver!
    Ou será ilusão? Uma “pegadinha” do universo material, o universo das ilusões.

    Palavras não nos levarão a resposta.

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  22. Imagina se Gandhi pensasse assim...
    Que tudo "é"....
    Ou que a imposição dos homens aos homens, também simplesmente "é"...
    E talvez eu não acredite na evolução que tu falas, por uma espécie de síntese resultado do suprimento dialético de dois "diferentes" num novo..

    Mas então nos caberia simplesmente pensar/sentir tudo como uma mudança sobre a qual não nos cabe qualificar ou fazer algo por? Acho que isso tira a responsabilidade das nossas mãos enquanto praticantes do mundo, daquilo que inalienavelmente é da nossa conta.
    E palavra tem poder, palavra subjetiva, palavra é coisa prática. Se não fosse assim, você não se preocuparia em responder, nem eu. Se não fosse assim, Dalai Lama não escreveria livros sobre o poder do silêncio (e ele tem vontade com isso), nem Krishnamurti, nem os Hare Krishna venderiam seus manuais nas ruas, conversando com as pessoas; concordo, contudo, que a mente é sacana e ela pode inetrditar caminhos muito amplos pra se sentir/viver a experiência no mundo. Mas isso não tira o valor da palavra.
    Sobretudo das perguntas...

    E eu ainda não consegui considerar uma ilusão um menino sem braço, sem família, chorando num campo de refugiados; creio que seria um bocado indelicado da minha parte dizer pra ele (estando eu no lugar onde estou) que tudo é uma ilusão, que a dor dele( provocada pelo fazer humano)é uma pegadinha do universo material....
    Enfim, é mesmo complicado.

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  23. Ver o menino sem comida e passando fome pode ser triste, sob a perspectiva humana.
    Sob a perspectiva do peixe que ia ser pescado e comido, pode ser feliz.
    Sob a perspectiva da estrela-gigante-vermelha, pode não fazer tanta diferença se o menino passa fome ou não.
    Apesar de que eu penso que alguma influência sempre faz, até mesmo para a estrela-gigante-vermelha a milhões de anos-luz daqui. Pois sinto que tudo neste universo está conectado. Mas provavelmente para a gigante-vermelha não será nem felicidade nem tristeza.

    Eu me comovo com tudo isso que você diz, pois também tenho a perspectiva humana. E, enquanto ser humano, é muito difícil escapar desta perspectiva.
    Mas a perspectiva humana não é a única e também não é única.

    As palavras tem poder e valor sim! Pois elas estão no universo material. E todos os elementos deste universo têm influência entre si.
    As palavras divertem, emocionam, enganam, esclarecem, etc. E até podem fazer os mbyá-guaranis rir (e isso também é ter poder e valor!)
    Porém, ainda assim, para enxergar mais além do universo material é preciso muito mais que palavras.

    Isso tudo é uma tentativa de traduzir em palavras o meu pensamento. Espero que você não pense assim. Pois os caminhos possíveis são infinitos.
    Atualmente eu penso assim. Mas isso também pode mudar amanhã. Pois são pensamentos e palavras de alguém no universo material.

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  24. ta legal, continuem aí...

    fala paulo!

    grande abraço pro beto pro léo e pra daiane!

    lufi

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  25. Não vou mais falar da vida.

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  26. Abraço, Lufi!
    P'ro Paulo tenho outra legal..."Eu não discuto mais não"..eheh
    Mas gosto muito do "Não vou mais falar da vida"..
    well, let it be..let it be...
    Abraço a todos

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